Compartimentos

A necessidade de pertencer a um grupo, ter uma identidade, dizer “eu sou assim”, é a meu ver uma forma de se ver menos perdido em relação à vida. Se não tivermos uma identificação e fizermos parte de alguma coisa ficamos meio à deriva. É como se nos fossem dadas todas as possibilidades e nós, sabendo que não podemos experimentar todas, não escolhêssemos nenhuma.
Quando chegamos nesse mundo podemos escolher o caminho que quisermos. E qualquer caminho que escolhamos seguir é em última análise uma fantasia, porque ninguém é médico ou marido ou roqueiro ou brasileiro ou qualquer outro adjetivo quando fecha os olhos.
Naqueles momentos um pouco antes de dormir, quem somos verdadeiramente ? Quando não estamos pensando em “quem nós somos”, quem somos nós então ? Quem somos nós de olhos fechados ?
Uma potencialidade, uma vontade, um querer ? Nossa alma talvez. Um centro de controle que fica bem lá no nosso âmago. Seremos “vontade de potência” como diria Nietzsche ?
Então o “eu sou” só existe pelo nosso querer e pelo reconhecimento do outro dessa característica qualquer que ela seja. O que seria de um médico se a sociedade não o reconhecesse como tal ? Ou um marido que a esposa não acha que ele seja seu esposo ?
A realidade dos adjetivos dados às pessoas nesse mundo deriva de nossa opinião sobre isso complementada pela opinião dos outros sobre esse adjetivo.
Então eu posso dizer que inerentemente, no fundo, lá no meu centro de controle interno eu Nelson Teixeira não sou motociclista, nem analista de sistemas, nem qualquer coisa que não seja característica da minha matéria.
Mas quando vim para este mundo, comecei a fazer escolhas e achar qual “fantasia” ou “caminho” ou “vida” que eu queria levar. Qual realidade eu quis experimentar. E nesta vida escolhi entre outras coisas ser analista de sistemas de profissão. Pra isso estudei e recebi um papel que é um documento que representa o conceito abstrato do nível de conhecimento que tenho nessa área específica.
Repare no termo “conceito abstrato”.
Essas escolhas nos levam a experimentar a realidade da forma que mais se adequa a nós. Se falarmos somente dos caminhos na vida que não levam ao sofrimento, que são somente escolhas diferentes, nenhum caminho é “mais válido” que o outro. O valor de um médico, é o mesmo de um geólogo, o valor de um alemão é o mesmo de um chinês, o valor de um sujeito que goste de andar de patins é o mesmo de outro que goste de andar de bicicleta.
Essas escolhas, no momento de serem feitas, são relativamente fáceis, mas uma vez começado a percorrer o caminho nos levam a lugares muito diferentes uns dos outros.
Dei um exemplo relativo a profissão, mas isso acontece com qualquer coisa que seja conceitual. Ser motociclista por exemplo é outra coisa conceitual.
Às vezes anda-se de moto por necessidade, mas ser motociclista, participar de MC, dedicar tempo a organização, fazer viagens, etc, exige um outro nível de compromisso com o que é inicialmente só um conceito.
Entretanto em alguns casos o que é um mero conceito, se torna na mente de alguns uma obsessão.
Primeiro começa a se afastar de quem não compartilha de suas ideias. Aí fica com um grupo restrito de amigos. Talvez pertença a um certo grupo ou local ou nicho cultural.
Depois de um tempo percebe que naquele grupo existem pessoas que são mais afins com ele e se aproxima mais delas e assim segue compartimentado sua vida até só restar ele “o mais dos ”. É o caminho que leva no final àquela frase “Todos os animais são iguais mas alguns são mais iguais que outros” tirada do livro “A Revolução dos Bichos” de George Orwell que transmite bem o que acontece no final deste processo.
O problema com essa atitude é que ela leva à solidão, à incompreensão da realidade do outro, amplia a falsa idáia de que por termos esta ou aquela característica, somos melhores que o outro. Não somos. Apenas escolhemos aquele caminho pra nós. Leva à separação, à compartimentalização das pessoas em nichos cada vez menores.
Então vejo que é bom que tenhamos nossa identidade, mas também é bom que lidemos bem com realidades diferentes da nossa e que não achemos que por sermos parte desde ou daquele grupo somos melhores do que este ou aquele outro grupo.
Conviver em paz é melhor do que conflitar. Quando a atitude em relação ao outro muda de “sou melhor que ele” para “sou igual a ele” começamos a enxergar pontos em comum ao que antes era tido como completamente diferente de nós e assim construir pontes no entendimento que levam à união e à paz.

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